sábado, 11 de fevereiro de 2012

Psicologia Analítica, também conhecida como Psicologia Junguiana ou Psicologia Complexa, é um ramo de conhecimento e prática da Psicologia, iniciado por Carl Gustav Jung o qual se distingue da psicanálise, iniciada por Freud, por uma noção mais alargada da libido e pela introdução dos conceitos de inconsciente coletivosincronicidade e individuação.
Diferentemente de Freud, Jung via o inconsciente não apenas como um repositório das memórias e das pulsões reprimidas, mas também como um sistema passado de geração em geração, vivo em constante atividade, contendo todo o esquecido e também neoformações criativas organizadas segundo funções coletivas e herdadas. O inconsciente coletivo que propõe não é, apesar das incessantes incompreensões de seus críticos, composto por memórias herdadas, mas sim por pré-disposições funcionais de organização do psiquismo (comparáveis às condições a priori da experiência, de Kant).
A psicologia analítica foi desenvolvida com base na experiência psiquiátrica de Jung, nos estudos de Freud e no amplo conhecimento que Jung tinha das tradições da alquimia, da mitologia e do estudo comparado da história das religiões, e as quais ele veio a compreender como autorepresentações de processos psíquicos inconscientes.
Quando Jung conheceu a obra de Freud, identificou-se com grande parte de suas idéias logo quis conhecê-lo. Ao se conhecerem, a admiração foi mútua, pois Freud rapidamente recebeu o jovem como seu colaborador e um dos defensores de suas idéias. Devemos lembrar que Freud enfrentava grande resistência do mundo científico às suas ideias e, em contrapartida, Jung já tinha reconhecimento no mundo acadêmico pelos seus estudos com associações de palavras que deram origem ao polígrafo e foram a base teorica experimental para a comprovação dos complexos. Freud, em sua obra, atribui este termo a Jung. A parceria durou pouco, pois Jung mostrava-se insatisfeito com algumas das posições de Freud, especialmente a teoria da libido e sua relação com os traumas.

Pós-junguianos

A Psicologia Analítica conheceu, depois da estruturação por C.G.Jung, um grande desenvolvimento nos chamados pós-junguianos, os quais ampliaram a visão de Jung. Merece destaque neste desenvolvimento a Escola Desenvolvimentista que estudou o desenvolvimento humano desde o nascimento até a fase adulta e que tem como fonte a Escola Junguiana de Londres e a pessoa de Michael Fordham com sua obra "A criança como indivíduo" e também a pessoa de Eric Neumann com a obra "A criança". Além desta, há também a Psicologia Arquetípica que é fruto do trabalho de James Hillman, o qual, explora e desenvolve ao máximo a importância dos arquétipos na vida das pessoas. Ainda no contexto da escola arquetípica, autores contemporâneos, como Fragoso Guimarães e Rocha Filho, têm relacionado a Psicologia Analítica à Física, na linha de pesquisa Física e Psicologia, introduzida em nível de pós-graduação em muitos cursos avançados de psicologia analítica e transpessoal. Marie-Louise voz Franz foi uma das mais importantes colaboradoras de Jung, e após sua morte desenvolveu um amplo trabalho abordando temas como a alquimia, a interpretação psicológica dos sonhos e dos contos de fadas. Outra importante analista foi Nise da Silveira, psiquiatra brasileira contrária ao tratamento agressivo nos hospitais psiquiátricos de sua época. Nise criou o Museu de Imagens do Inconsciente, o qual possuia obras de arte manuais e plásticas de pacientes psiquiátricos, relacionando-os com a teoria do seu tutor, C.G. Jung.
PSICOLOGIA ANALÍTICA
A psicologia analítica de Jung é um caso curioso na ciência. Embora suas idéias sobre a psique tenham se entendido muito bem com outras ciências como a física quântica e a antropologia e tenham inclusive influenciado a sociologia, Jung sempre foi considerado um tanto místico por grande parte de seus colegas psicólogos, tendo suas idéias relegadas a uma importância menor na história da psicologia e do pensamento contemporâneo.

Somente agora, quatro décadas após sua morte, suas teorias a respeito da psique começam, de fato, a ser levadas a sério no meio acadêmico, influenciando psicólogos, psiquiatras e os novos cientistas da consciência. A notável abrangência de seu trabalho também tem alcançado profissionais de áreas distintas como médicos, educadores e artistas, o que tem feito com que suas idéias sejam cada vez mais incorporadas pelo público médio.

Afinal, o que possuem as idéias de Jung que tanto aproxima as ciências e aos poucos o qualifica como o primeiro pensador da pós-modernidade e um dos mais revolucionários pesquisadores da consciência?
Carl Gustav Jung nasce em 1875, em Kesswill, na Suíça. Forma-se médico e especializa-se em psiquiatria, ciência em formação. O interesse pelos distúrbios mentais o faz desenvolver profundos estudos sobre a mente e suas conclusões o aproximam de Freud em 1907. O já famoso psicanalista judeu-austríaco é figura polêmica no meio acadêmico e enfrenta dificuldades para ter levadas a sério suas idéias sobre o inconsciente. Freud logo reconhece o alto valor do suíço e vê nele, no não-judeu, a cabeça ideal para levar adiante a psicanálise.

Jung, chefe de clínica do renomado hospital psiquiátrico de Zurique, mesmo ciente dos riscos que corre sua carreira e vendo limitações comprometedoras nas teorias do mestre vienense, toma defesa de Freud em público e assim tornam-se colaboradores.

Seus estudos e sua experiência clínica, porém, levam-no a divergir da psicanálise e a dolorosa ruptura acontece em 1912. Freud sente-se traído. E Jung vê-se em apuros pois conhecidos e amigos o abandonam. Inicia-se aí o período mais difícil e delicado de sua vida onde ele abandona as atividades acadêmicas e parte para um solitário, terrível e decisivo confronto com o inconsciente - que levará anos e quase lhe será fatal.

Mas ele supera o desafio, emerge dessa fase revigorado e prossegue com seus estudos, mesmo consciente que dificilmente a mentalidade científico-ocidental levará a sério coisas como inconsciente coletivo, mitologia e alquimia, para ele fundamentais na compreensão dos processos psíquicos. Morre aos 86 anos, em 1961, deixando uma instigante obra, ainda hoje revolucionária.

Atualmente percebe-se um aumento de interesse pelo pesquisador suíço, tanto no meio acadêmico quanto pelo público médio, mas até poucos anos atrás a grande maioria dos cursos de psicologia dedicavam, quando muito, uma ou duas aulas às idéias de Jung e só. Assim como a medicina tradicional ainda está, na maior parte, presa ao paradigma mecanicista newtoniano, nossa psicologia "oficial" ainda é freudiana-psicanalítica. No entanto alguns pesquisadores desde cedo apoiaram as teorias do suíço, inclusive físicos (!) que viram em suas inusitadas descobertas no mundo das partículas subatômicas incríveis semelhanças com as teorias junguianas sobre o funcionamento da psique. Para esses cientistas o mundo dos átomos revelava uma espécie de consciência e, de repente, era como se mente e matéria não fossem tão distintas assim e se influenciassem mutuamente - como afirmava Jung, desafiando o paradigma newtoniano-descartiano ainda hoje vigente. Sociólogos e antropólogos também o apoiaram e a psicologia transpessoal surgiu a partir dele.

Como pesquisador da consciência, psicoterapeuta, antropólogo e pensador, Jung levou suas descobertas a uma abrangência notável, refletindo sempre sua preocupação com o futuro da humanidade. Suas idéias estão cada vez mais presentes nas universidades, em livros, filmes, na vida cotidiana e nas novas maneiras de se interpretar a realidade.
CIÊNCIA E O "EU" SUPERIOR

Jung afirma que o inconsciente não é subproduto da consciência nem mero depósito para onde são desviados desejos recalcados e frustrações sexuais, como pensava Freud. Para Jung a consciência individual é que é produto do inconsciente coletivo da humanidade e traz consigo sua própria porção inconsciente, que com seus conteúdos escondidos da luz da consciência, influencia o comportamento do indivíduo. Nos recônditos escuros da psique o inconsciente está sempre atuando e faz com que os sonhos, em sua linguagem simbólica, sejam a representação fiel dos processos psíquicos - nosso apego à racionalidade é que nos afastou da linguagem dos símbolos e não mais a entendemos.

Para Jung o sentido da vida é a individuação, espécie de impulso natural da psique rumo à concretização da potencialidade que trazemos em nós (realização da personalidade total). Esse processo inclui um profundo conhecimento de si próprio através da auto-investigação psicológica, fazendo-nos mais cientes de nós mesmos e mais capazes.

Para Jung o processo de individuação é conduzido por um tipo de centro ordenador da psique, que ele denominou self (si-mesmo) e que seria ao mesmo tempo o centro e a totalidade da psique. Individuar-se significa ampliar a consciência, a área superficial da psique. Representa separar-se da massa, do turbilhão inconsciente, e adquirir autonomia; representa tornar-se uma totalidade psicológica, una e centrada, sem divisões internas: um “in-divíduo”. Este é o caminho para a personalidade total e a mais íntima realização pessoal. Para Jung o futuro da humanidade dependerá diretamente disso: da quantidade de pessoas que conseguirem se individuar.

Não é difícil imaginar o quanto isso deve ter soado místico a certas mentalidades. Quer dizer então que se eu entrar nessa meu eu superior passa a cuidar de mim? - gozam os mais céticos. Há, porém, os que pagam para ver.
TAOÍSMO, ALQUIMIA E UFOLOGIA

Jung foi ousado ao valorizar o estudo da mitologia, das religiões e da sabedoria oriental, mostrando a ponte para ligar dois modos distintos - mas não excludentes - de interpretar a realidade. Seu conceito de sincronicidade (coincidência entre estados psíquicos e acontecimentos físicos sem relação causal entre si) apresentou à mentalidade científica o mecanismo das grandes coincidências, dos oráculos como o tarô e dos eventos ditos ocultos.

Ele sugeriu que, assim como a idéia taoísta de unicidade, nosso inconsciente pessoal está ligado a todos os outros formando um inconsciente maior, único e coletivo - assim, sem percebermos, estão nossos pensamentos todos interconectados. Chegou à corajosa conclusão que a humanidade guarda em seu inconsciente geral o registro de todas as suas vivências, mesmo as mais arcaicas (mitos e arquétipos) e assim o passado de um torna-se patrimônio de todos (viria daí, afinal, a idéia de que já fomos alguém em outra vida, presente em tantas culturas?). Mostrou que o I Ching, o milenar livro chinês das mutações, constitui a primeira tentativa documentada de relacionar o inconsciente e o Universo e assim a mentalidade oriental deveria ser vista com menos preconceito... Jung falava de intercâmbio, não de descarte, entre distintas percepções da realidade. Mas a ciência tradicional deu risinhos.

Seus estudos sobre a alquimia medieval mostraram que ela é precursora da nossa ciência do inconsciente. A relação mente-matéria já era conhecida dos alquimistas que, em sua linguagem descreviam, simbolicamente, os processos psíquicos. Sobre isso, diz a psicóloga Nise da Silveira, uma das mais respeitadas estudiosas da obra de Jung no mundo: "A exploração em profundeza do inconsciente levou ao curioso achado de que os mais universais símbolos do self (si-mesmo) pertencem ao reino mineral. São eles a pedra e o cristal. Se o psicólogo, nas suas investigações através das camadas mais profundas da psique, encontra a matéria, por sua vez o físico, nas suas pesquisas mais finas sobre a matéria, encontra a psique."

As idéias de Jung influenciam até mesmo a ufologia. Hoje pesquisadores de todo o mundo se debruçam intrigados sobre o fenômeno óvni e o drama psicológico dos contatados e abduzidos (pessoas que dizem ter contatos com extraterrestres), buscando pistas que possam nos ajudar a compreender por que tudo isso está acontecendo.

Já em 1958, em seu livro Um Mito Moderno sobre Coisas Vistas no Céu, Jung alertava que é preciso pensar nesses discos voadores de um modo mais abrangente e captar a verdade psicológica das aparições, não importando se são verdadeiras ou não. É preciso entender que quando um mito emerge das profundezas da psique para a vida cotidiana, força a consciência a integrar novos aspectos da existência e inaugura uma nova fase de evolução psíquica. Assim sendo, estamos, todos nós, nesse exato momento, sendo atingidos pelo forte impacto desse mito moderno e, confusos, ainda não entendemos exatamente que diabo está acontecendo. Os contatados e abduzidos são, no entanto, os mais atingidos. Como soldados da linha de frente de uma batalha, eles são forçados a vivenciar, como pioneiros, certas experiências que podem conduzir a humanidade a uma nova e mais abrangente compreensão da realidade e de si mesma.

Para Jung o desequilíbrio psicológico levou a humanidade a um terrível impasse evolutivo: ou nos tornamos seres mais autoconscientes ou nos exterminaremos a todos. O fenômeno dos discos voadores, mito que alcançou a consciência coletiva no meio do século 20, é assim uma projeção inconsciente, nos céus, de um intenso anseio coletivo de salvação num momento crucial de desespero. As luzes e imagens circulares que vemos são a mais antiga e perfeita representação simbólica do arquétipo da unificação, equilíbrio e totalidade psíquica: o círculo. É como se a psique coletiva da humanidade jogasse aos céus seu recado urgente: “Atenção todos! Precisamos nos tornar mais inteiros e unificados!”

As teorias junguianas sobre o fenômeno óvni são inadequadas para provar a existência física de naves e extraterrestres, é verdade. Mas esse não é seu papel. Elas agem contribuindo para alargar nossa compreensão do fenômeno, alertando para a relação entre o que ocorre na alma da humanidade e o que está acontecendo nos céus de nosso planeta.
O CHAMADO PARA DENTRO

Jung deu o nome de psicologia analítica à sua psicologia. Ela difere da psicanálise em muitos pontos mas ele mesmo não descarta a importância dessa para alguns tipos específicos de terapia. A psicologia analítica incentiva o indivíduo a descer os degraus escuros do inconsciente e, uma vez lá, reconhecer o que ele na verdade é e integrar esses conteúdos à consciência, tornando-se um ser mais completo e autoconsciente. Assim como alguém decide fazer um curso de computação para investir em seu futuro, muitos procuram a psicoterapia para... autoconhecer-se, saber de suas potencialidades. Aí está um grande investimento: conhecer-se melhor. Para viver melhor.

O processo de individuação será sempre algo difícil. Mas ele é a base da existência. Durante muito tempo nós o vivemos apenas superficialmente mas em algum momento a psique chama o ego a voltar-se para dentro, a conhecer-se, a vasculhar no interior as verdades até então buscadas fora. A partir daí novos horizontes se abrem para a realização pessoal. Entretanto, mesmo sob esse impulso natural, o ego, temeroso de confrontar-se com seus medos mais íntimos, pode se recusar a tal interiorização. Nesse caso ele estará impedindo o fluxo natural de sua evolução e a psique, em sua capacidade auto-reguladora, encaminhará a vida a um conflito insustentável, ocasionando doenças, fracassos e até mesmo a morte.

O autoconhecimento psicológico nos faz ver que os conflitos da humanidade acontecem primeiro dentro de cada um, sutilmente, para depois se exteriorizar. Para Jung, entendermo-nos com aquilo que não conhecemos de nós mesmos é o grande passo que falta ao Homo sapiens. Só assim deixaremos de ver o inimigo no outro e o reconheceremos onde sempre esteve: dentro de nós mesmos. Esta é uma verdade simples que poucos enxergam. Mas que traz em si a força das maiores revoluções.
O MITO NA TEORIA E NA PRÁTICA DA PSICOLOGIA ANALÍTICA
WALTER BOECHAT
A mitologia tem importância essencial na formulação na teoria da psicologia
analítica desde seus inícios. Isso porque toda teoria psicológica tem uma psicopatologia
que fundamenta seu construto teórico. Lembrando que a psicanálise tem como a histeria
como fundamento psicopatológico de seu construto, embora, é claro, Freud se dedicou ao estudo de diversas psicopatologias, a esquizofrenia é a psicopatologia que dá o fundamento teórico para a psicologia analítica de Jung. E o conteúdo esquizofrênico está profundamente imbricado no mito, como veremos a seguir.
Podemos resumidamente fazer um desenho estrutural dos percursos de Freud e
Jung na construção de suas teorias, um desenho quase estrutural à la Lévi-Strauss, tal a
semelhança dos elementos que constituem os percursos dos dois criadores.
Freud vai a Paris, trabalhar com Charcot no Hospital Salpetriére, com pacientes
histéricos. No sintoma histérico, formula o conceito do recalque para justificar em sua
psicodinâmica a existência do inconsciente pessoal. Chega então ao problema da novela
familiar, ao complexo de Édipo e ao incesto como origem de toda neurose.
Jung no início de sua carreira médica trabalha com Eugen Bleuler no Hospital
Burghölzli, próximo a Zurique. Trabalha com os esquizofrênicos, e nos delírios dos
esquizofrênicos descobre os mitologemas, ou mitemas, fragmentos de mitos que apontam para uma origem comum, coletiva, desses conteúdos delirantes. Os mitologemas irão dar a pista Jung para a existência do inconsciente coletivo. Além disso, fornecerão ao psiquiatra suíço uma perspectiva simbólica a partir da qual poderá compreender os delírios como tendo um sentido. O delírio não é, portanto impenetrável, como quer a psiquiatria clássica, sem sentido mas tem um sentido próprio, desde que se parta de um pressuposto simbólico para compreendê-lo.
Jung seguiu seu mestre Bleuler procurando sempre o conteúdo simbólico das
esquizofrenias e não apenas mantendo uma posição descritiva, diagnóstica. O caso
Babette descrito por Jung é famoso por apresentar um delírio em forma de uma aliteração totalmente irracional e incompreensível: “eu sou o sino”, “eu sou o sino”, “eu sou o sino”.
Do ponto de vista da consciência, se não partirmos de um pressuposto simbólico
ou de associações tal aliteração é totalmente incompreensível. Mas Jung persistiu na
convicção que todo delírio teria um núcleo compreensível, desde que partamos de um
pressuposto simbólico. Em fase posterior, com ligeira melhora da paciente, com melhor
comunicação, ela revelou admirar o poeta Schiller, autor do poema O Sino. Babette, filha de importante família suíça, havia sido abandonada no grande hospital cantonal Bürghozli.
Sentia-se sem importância, não valendo nada. Delirava, dizendo: eu sou o sino. Era a
forma de seu inconsciente dizer: eu sou importante, eu tenho valor, não sou tão sem
importância assim...
Jung, no começo de sua carreira profissional formula o importante conceito da
compensação, de que o delírio opera compensando a atitude da consciência. Este
importante conceito vai permanecer intacto durante toda a formulação teórica da psicologia analítica. Mais tarde será central na teoria da interpretação dos sonhos, na qual Jung dirá que o sonho também compensa a atitude consciente do sonhador, um conceito que rege a relação entre os dinamismos conscientes e inconscientes, operando, como se fora, por uma homeostase psíquica.
Mas a imagem do sino de Schiller nesse exemplo aponta para uma figura literária
da experiência em nível pessoal da paciente, isto é; por uma série de associações
conscientes, seu gosto pela poesia de Schiller, seu estado de profunda depressão e
sentimento de abandono consciente e outros fatores da consciência, o conteúdo delirante
torna-se explicável. Mas há diversas situações nas quais o conteúdo do delírio apresenta-se como um mito de tonalidade coletiva, impessoal. Ainda sem perder suas características de compensação homeostática pois essa é uma característica geral da operosidade da função transcendente do Self, produzindo um tertio non datur, um terceiro não determinável como diz Jung, quando a tensão dos opostos é quase insustentável, o delírio apresenta conteúdos de tonalidade impessoal, pertencentes ao inconsciente coletivo. Tal é a natureza dos mitologemas..
É bastante conhecido exemplo do paciente do falo solar, que teria sido o primeiro
caso que “deu a pista” (hint) em suas próprias palavras, para a descoberta do inconsciente coletivo em famosa entrevista para a TV BBC de Londres. O paciente puxa Jung pela lapela do paletó e diz com muita ansiedade, mais ou menos assim: Doutor olhe o sol, como Jung, C.G.-(1906) A psicologia da demência precoce. O. C. vol. 3.
tem um falo, é o falo do sol que a origem dos ventos... Se o senhor balançar a cabeça da
esquerda para a direita verá o falo solar também oscilando, ele é a origem dos ventos....
Jung, naturalmente pensou, “é um conteúdo delirante como tantos outros, sem
sentido lógico nenhum”, mas anotou em seu bloco de notas. Quatro anos depois encontrou em Paris o famoso Manuscrito Papiro de Paris, que fala da Religião Mitraica, como se sabe é a religião persa dos adoradores do deus solar Mitra, popular em Roma na época Cristã, concorreu bastante com o cristianismo. Nesse manuscrito, havia oração de sacerdote de Mitras com oração quase idêntica à fala delirante do paciente esquizofrênico de Jung: se olhares para o oriente verás o falo solar, que se move do oriente para o ocidente. Este falo se move originando os ventos.
Para Jung foi importante que o paciente não tivesse conhecimento do mito e tivesse
pouca cultura geral. Esse foi o primeiro exemplo para que mais tarde Jung formulasse a
teoria do inconsciente coletivo e dos arquétipos. Portanto a presença do mito, isto é, dos
mitologemas nas produções delirantes de esquizofrênicos está na própria gênese da teoria junguiana do inconsciente coletivo. Jung posteriormente formulou teoricamente como se dá a presença do mito no dinamismo consciente-inconsciente.3 A psique consciente é regida pelo pensamento dirigido, ou adaptativo, linear. A psique inconsciente pelo pensamento circular, onírico, ou mitológico. Portanto o ego tem o pensamento apolíneo de adaptação à realidade externa, linear que funciona pelo mecanismo de associação de idéias racionais. O inconsciente opera pelo mecanismo associativo de imagens mitológicas.
Retomando o conhecido exemplo do falo solar, é importante lembrar que a imagem
do falo solar aparece em muitíssimas outras religiões e obras de arte. Apenas para citar as mais conhecidas, lembramos o deus egípcio solar Ra, com seu falo fecundante, os quadros medievais cristãos de Ambrogiotto di Bondoni, o Giotto, com a Virgem Maria sendo fecundada pelo sol entre outros muitos exemplos. Diversos outros psicóticos incluem entre seus delírios o falo solar, sendo o mais conhecido o Schreber, paciente importante para Freud e Jung por diversas razões.
Daniel Paul Schreber foi culto jurista alemão que apresentava graves surtos
psicóticos delirantes floridos. Seus surtos surgiam quando era promovido de cargo como jurista. Nos intervalos de melhora de seus surtos delirantes escreveu: Memórias de um doente de nervos 4. Nessa obra, rica em detalhe de seus surtos, o autor descreve suas vivências psicóticas. Jung, nesta época trabalhando em colaboração com Freud, mostrou-a ao mestre. Schreber descreve sua atração homoerótica por seu médico. Vê-se como mulher, nua, sendo fecundado por um sol fálico. Freud, trabalhando os delírios
homoeróticos de Schereber construiu a problemática teórica da síndrome paranóide: a
formulação inconsciente que é negada: “eu não o amo”. E então projetada: “não, ele me
ama”. E depois, a formação reativa, persecutória, que encobre o amor homoerótico: “Não, Jung reconhecendo a importância do trabalho de Freud ficou, entretanto,
impressionado com a presença marcante de material mitológico nos delírios de Schreber, inclusive novamente o Falo Solar fecundante. A presença do material mitológico nas psicoses faz Jung não só propor a teoria do inconsciente coletivo e dos arquétipos mas questionar a problema da libido exclusivamente sexual. O círculo de Viena que compunha o movimento inicial da psicanálise tinha poucos psiquiatras, a não ser Tausk e o próprio Jung5. Era composto de Freud, neurologista, e maioria do grupo de médicos clínicos que procuraram posteriormente a psicanálise, op. cit., pp.49 e ss. A falta de experiência com as psicoses parece-me ser importante aqui na teoria da libido. Enquanto Freud dá à libido um tom exclusivamente sexual, por mais amplo que se queira dar ao termo sexual, ao seu uso na segunda tópica de Freud, creio que devemos discutir a questão da libido com referência à psicopatologia, e no caso à esquizofrenia e ao mito como elemento organizador da teoria junguiana.
Jung percebeu como dissemos a incidência dos mitologemas no delírio esquizofrênico e a partir daí formulou a hipótese do inconsciente coletivo e dos arquétipos.
Mas outro ponto que discuto aqui é que a própria teoria da libido foi discutida a partir da observação das psicoses. Outro delírio freqüente observado- em Schreber e outros
psicóticos- é o delírio de fim de mundo. Schreber via também todo o mundo sendo
destruído, e ele, Schreber, se transformando em um homem e uma mulher, e ele se
fecundaria a si próprio e originaria uma raça mais perfeita para re-popular toda a terra.
Realmente um Gotterdämmerung próprio! A incidência deste tipo de delírio é bastante
freqüente, embora atualmente pouco evidenciada com a chegada e expansão das
medicações antipsicóticas.
O psicótico apresenta as imagens psíquicas mais livres de censura da consciência.
Os freqüentes delírios mitológicos de fim de mundo refletem o movimento de introversão excessiva da libido psíquica do psicótico, seu autismo psíquico, a perda de contato com o mundo externo. Portanto as formulações de Jung sobre libido como energia psíquica partem de suas observações com psicóticos. A libido como energia pura e simples em seu movimento de extroversão e introversão. As manifestações mais simples e básicas desta energia seriam os ritmos, que estão presentes em movimentos repetidos dos rituais, da música, das batidas do coração, da respiração. 6 (Jung, 1912/1986).
As observações clínicas das psicoses fundamentaram as conceituações basilares de Jung do arquétipo e nestas observações os mitologemas dos delírios são fundamentais.
O mundo das psicoses é um mundo mitológico per se. Certa vez, trabalhando no
Hospital Psiquiátrico Pedro II, atualmente denominado IMAS Nise da Silveira, encontrei paciente extremamente regredido, que se escondia debaixo do leito, não querendo conversar com pessoa alguma, médicos ou pessoal da enfermagem. Insisti durante alguns dias, até que o paciente, saindo debaixo do leito, mostrou-me um cigarro e pediu-me que eu o acendesse. Após tê-lo acendido ele disse, murmurando: “Dr., nós somos esse cigarro, só que eu só a parte acesa e o sr. é a parte apagada....”
O paciente acabava de mitologizar intensamente nossa relação representando-a pelo
cigarro aceso. O fogo, representante arcaico da divindade, o fogo heraclítico, a sarsa
ardente de Moisés, tem papel importante nessa mitologização. Quem está próximo de mim está próximo do fogo, reza a frase do Novo Testamento, o fogo símbolo arcaico da
divindade7 funcionou neste caso como elemento catalizador do símbolo central da psiqué, o arquétipo do Self. O paciente esquizofrênico sentia-se próximo ao fogo, ao Self, e eu, na parte apagada do cigarro, junto ao princípio da realidade, representando o pragmatismo sobre o qual se poderia construir uma realização terapêutica construtiva.
A teorização fundamental que o pensamento inconsciente é circular ou mitológico
formaliza toda a conceituação junguiana dos arquétipos e do processo de individuação. O livro basilar que formaliza a separação com a psicanálise de Freud, Símbolos de
Transformação, é um exercício formal sobre uma série de imagens literárias e poéticas
que uma viajante, a sra. Miller anotava em seu livro de viagem, em longos roteiros de
navio pelo oriente e Rússia. O personagem principal destas anotações literárias é o herói
índio Chiwantopell, de Longfellow. O mito do incesto de Freud é criticado baseado no
mitologema descrito por Frobenius em diversos povos africanos: o mitologema da viagem noturna pelo mar, o sol que nasce no oriente é a figura de um herói, que morre no ocidente e deve se purificar dos males do mundo pela viagem noturna submersa pelo oceano e renascer no oriente. O incesto é morte aparente, é morte necessária para a transformação da personalidade. Naturalmente as colocações de um incesto simbólico por Jung ao lado de um incesto neurótico tradicional, suscitaram uma viva resistência, o que levou Jung ao conhecido diagnóstico para alguns acusadores seus de estarem possuídos pelo complexo de Nicodemos, incapazes de perceber a realidade de um incesto simbólico, mítico.
O arquétipo do herói está no núcleo do complexo egóico, que é o centro da
consciência. Portanto os mitos de herói são basilares para se entender a organização da
consciência do ponto de vista arquetípico. Do ponto de vista da dinâmica do processo de
individuação, o mito do herói configura a libido que flui no eixo ego-Self organizando o
ego, principalmente nos chamados episódios de transição.
Os mitos estarão ainda presentes em todo o material descritivo da psicologia dos
arquétipos, pois a psicologia junguiana é uma psicologia com a subjetividade com o
interior povoado, como diz Stein10 ou com personificação, como quer Hillman.11 Os
conteúdos psíquicos são na psicologia analítica personificados, não são apenas conceitos abstratos teóricos, como id, inconsciente ou arquétipo mas personagens vivos internos, Até agora nos detivemos à importância do Mito da organização teórica da
psicologia analítica. No que concerne à prática, as aplicações são fundamentais, já que o
movimento da libido inconsciente se dá por associação de imagens mitológicas, detectando a imagem que domina o quadro clínico de um paciente, podemos não só perceber o diagnóstico, isto é, qual a figura arquetípica mitológica que está dominando seu processo de individuação naquele momento, mas qual seu prognóstico e evolução. Trabalha-se em psicologia analítica com o processo de amplificação criado por Jung.
Nicodemos- Personagem do Novo Testamento incapaz de raciocinar simbolicamente. Quando o Cristo usa a parábola “para entrardes no Reino devereis ser como crianças”, Nicodemos se escandaliza e pergunta se as pessoas deveriam entrar de novo no ventre de suas mães para obter a salvação.
O processo de amplificação é método terapêutico original e em psicoterapia
moderna aos arcaicos modos de contar estórias que sempre existiriam em todas as culturas, no antigo xamanismo, por exemplo, no qual os xamãs sempre utilizaram antigas lendas no tratamento de doenças mentais e físicas. É paradigmático o exemplo que Lévi-Strauss relata do xamã Cuna do Panamá que utiliza cantar um mito tradicional para facilitar um parto de uma paciente.
Em minha clínica utilizo três tipos de intervenção de acordo com a defesa ou
regressão do paciente: a interpretação tradicional direta, quando o paciente está em
condições de ouvir a interpretação isto é, quando há condições adequadas para a
interpretação, a interpretação aludida (Kattrin Kemper) e a amplificação. A interpretação aludida, usando a expressão de Kemper14, é uma referência indireta ao complexo defendido, é um meio caminho entre a interpretação tradicional e a amplificação na qual se usa o mito na clínica de forma mais explícita. Já a amplificação propriamente dita proposta por Jung é o circumambulatio de uma área sensível, de uma ferida psíquica que devemos nos aproximar com cuidado, portanto aos círculos, por que ao mesmo tempo que é sensível, é portadora do mistério. Esta área nunca poderá ser reduzida pela explicação lógica explicativa.
Certa paciente depressiva tinha um casamento sem muitas perspectivas e uma vida
profissional vazia, quando na análise descobriu das técnicas expressivas, em especial a
escultura, um caminho para seu desenvolvimento pessoal. De início, por resistência tentou desvalorizar os objetos artísticos que criava com as mãos, ou a própria atividade manual.
Esta desvalorização era parte de seu processo depressivo. A depressão se originou na
infância, mais precisamente aos quatro anos de idade, quando a paciente foi vítima de
abuso sexual. Sua depressão era tal que qualquer interpretação de sua dificuldade em
realizar um trabalho profissional adequado seria pouco eficaz, uma interpretação aludida seria do tipo: “como a sociedade industrial desvaloriza o trabalho manual e artístico em prol do trabalho puramente mental!” Uma amplificação, que foi a adotada, em virtude de sua intensa regressão na época foi uma referência ao mito dos anões nos contos de fada e nos diversos mitos, os anões dos Niebelungos, no ciclo O Anel dos Niebelungos, por exemplo. Há o fato de que os anões estão sempre próximos de ouro e riquezas, como os anões do conto Branca de Neve. Na mitologia grega, os anões aparecem em sua criatividade como as Dáctilos e Cabiros. No mitologia do corpo, os anões são a mitologização da criatividade das mãos e a possibilidade de relativizar a consciência centrada unicamente no córtex cerebral, levando a consciência para o corpo todo. A mitologia dos anões foi uma amplificação do processo de individuação da paciente que nesta fase, dependeu da consciência das mãos, complementando a consciência cortical.
O trabalho manual veio em muito a reforçar todo o trabalho de elaboração da análise de seus complexos sexuais familiares não resolvidos de infância e só posteriormente a
interpretação direta pode ser integrada totalmente dentro do processo de individuação.
Máscaras do Ego: aspectos subjetivos das representações do corpo
Resumo: A pós-modernidade tem sido estudada por diversos autores sob variadas perspectivas, destacando diferentes temáticas referentes a esse momento histórico. Um dos temas da condição social atual que tem sido bastante discutido diz respeito ao excesso de individualismo. Em face disso, este artigo tem como objetivo a realização de um estudo sobre a supervalorização do eu junto a representação social. Quanto à metodologia, realizar-se-á uma pesquisa bibliográfica de obras de autores que tratam de questões relacionadas à supervalorização do indivíduo na atualidade, para que possamos ampliar nosso conhecimento sobre o assunto e contribuir para tal tema. A partir disso, foram encontrados nos conhecimentos trazidos por Jung e Freud aportes teóricos para vislumbrar, discutir e analisar a temática em questão.
Palavras-chave: Identidade. Persona. Representação social. Psicanálise.
Ocorre na sociedade contemporânea uma constante exaltação do ego que se traduz na valorização da estética a partir de um hedonismo exacerbado, da juventude, da cultura pop, do romantismo e do presente. Jovens desejam sempre permanecer jovens, e idosos ambicionam o “rejuvenescimento”.
Pode-se dizer que a sociedade adentra-se cada vez mais no estágio estético – apontado por Kierkegaard (1979) em sua obra Ou Isso, Ou Aquilo: Um Fragmento de Vida (1843) –, o qual se caracteriza pelo romantismo e o prazer propiciado pelo agora, ambos marcados pelo desejo, contrapostos à dor e ao tédio.
Apesar dessa busca por prazeres momentâneos, os indivíduos tendem sempre a se apoiar a algo concreto, a alguma característica de si próprios que valorizam de forma constante e intensa. A essa procura por um sustentáculo pessoal, é possível chamar supervalorização da persona em relação ao ego e, até mesmo, de narcisismo, características da sociedade pós-moderna. Essa base pessoal encontra-se na estrutura psíquica dos indivíduos, a qual “se altera de acordo com a máscara social” (MELLO et al., 2002).
Quando os prazeres se tornam escassos e sua persona sofre ameaça, o indivíduo passa a demonstrar-se, com maior frequência, insatisfeito. Como salienta Hegenberg (2007, p. 68), essa insatisfação pode ser resultante de um querer mais e mais, pois o indivíduo sente “um vazio irreparável, um nada, uma frustração contínua fruto de suas comparações com objetos idealizados”. Essa insatisfação limita as visões de mundo do indivíduo e traz problemas a sua autoimagem.
Para exemplificar, mesmo de caráter fictício, é possível citar a personagem Rachel Berry, da série musicalGlee, que possui como base de sua vida e de sua personalidade a voz. Tal como aponta Balser e Gardner (2011, p. 220), a voz de Rachel pode ser entendida como uma metáfora para a sua identidade. A personagem mostra-se capaz de tudo para alcançar o sucesso como cantora, e quando se vê ameaçada a perder a voz por causa de uma amidalite, entra em pânico e em profunda tristeza (senão uma depressão). Desse modo, a voz de Rachel também pode ser entendida como uma máscara que esconde seus maiores medos e anseios. Caso ela a perca, perderá também aquilo que esconde o que ela reprime.
Através de concepções diversas, será realizada uma tentativa de explanação dos valores e sentidos que os indivíduos atribuem a suas características físicas.
1. Persona: a Identidade Ideal?
As coisas nem sempre são o que parecem ser – já diz o adágio popular. Assim como a voz não é apenas uma voz, como foi exemplificado, um corpo não é apenas um corpo. É a forma com a qual as pessoas representam-se e criam sua “identidade”.
Identidade, para Stuart Hall (1998), citado por Borges (2004), “é algo formado ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato”. Devido a esse processo, que se inicia na concepção e termina na morte do indivíduo, o termo correto a se utilizar seria identificação, que diz mais a respeito ao momento que o indivíduo vive.
Dado como forma de identificação, o corpo é construído através da linguagem. Como afirma Goellner (2010, p. 29), é ela que “tem o poder de nomeá-lo, classifica-lo, definir-lhe normalidades e anormalidades, instituir, por exemplo, o que é considerado um corpo belo, jovem e saudável”.
Dado que a linguagem é a “produtora” do corpo, e como filmes, músicas, revistas, livros, imagens e propagandas são métodos de transpor essa linguagem, pode-se dizer que são eles também responsáveis pela criação de uma imagem ideal, um exemplo ou padrão a ser seguido (GOELLNER, 2010, p. 29). A questão é: o que ocorre com quem não possui formas – sejam elas físicas, financeiras, culturais – para seguir os modelos impostos?
Um grifo interessante pode ser tomado a partir de pressupostos a respeito do Transtorno de Personalidade Boderline (TPB). O indivíduo que não consegue “se adequar” a esses modelos criaria seu ideal do ego, que dele exigiria o máximo. Ele utilizaria todo o seu potencial para alcançar a perfeição, o que seria desgastante e, provavelmente, em vão, logo que seu desejo de se tornar o centro do universo é, de certa forma, impossível de ser realizado (HEGENBERG, 2007, p. 69). Essa busca pelo “centro das atenções” refletiria na criação de uma base, pelo sujeito, para se sustentar: a persona.
Persona, segundo Jung citado por Humbert (1983), seria a forma que o sujeito assume uma personalidade para se adaptar ao ambiente e para com ele se relacionar. Constituir-se-ia, como aponta Mello e outros (2002), de “papeis sociais, tipo de roupa e estilo de expressão pessoal”. Esse termo é derivado das máscaras que atores gregos utilizavam no teatro.
No exemplo citado anteriormente, Rachel Berry produz seu ideal do ego utilizando-se de sua voz: é ela a suapersona, e é com ela que se adapta (ou tenta se adaptar) aos “companheiros não tão talentosos” do coral da escola. Antes de cantar um solo no mesmo episódio, ela afirma que a música escolhida trata de enfrentar desafios, que em seu caso, seriam os colegas que não conseguem prosseguir sozinhos sem tê-la ao lado. Rachel, que sempre teve problemas com sua aparência, com sua personalidade forte (ela mesmo se considera irritante e convencida) e, principalmente, com seu nariz (o que ela deixa claro em um dos episódios seguintes a este, no qual ela adentra-se no dilema de fazer uma cirurgia plástica ou não), tem sua voz como máscara de sua identidade – a representação que ela faz é que a voz é produtora de todo o seu talento. Se ela é como é, como ela mesma explica, é por causa da voz. “Quando Rachel está abalada por ter perdido a voz, ela explica muito claramente o simbolismo por trás dessa perda: quem é Rachel Berry sem sua voz?” (BALSER; GARDNER, 2011, p. 220). Sua máscara cairia com essa perda, e ela não teria como explicar os motivos de seus atos e anseios.
Existem dois tipos de persona: uma para quando estamos sozinhos e uma para o convívio social. Esta última pode apresentar características positivas ou negativas, variando de indivíduo para indivíduo. Ela pode tanto proteger o ego, reprimindo sentimentos que podem ocasionar tragédias pessoais e desavenças no âmbito social, quanto criar uma identidade mascarada, artificial, contrária aos traços do sujeito (MELLO et al., 2002).
Essa identidade mascarada é aquela produzida através de representações sociais que o indivíduo cria sobre seu próprio corpo. São significados que ele atribui ao seu sustentáculo pessoal, a sua base. Quando essa base encontra-se em perigo, correndo riscos de desconstituição, o sujeito sofre a angústia, a qual se demonstra como constantes pânico e tristeza.
Freud comprova esse pressuposto. Em seu artigo Inibição, Sintoma e Angústia, trata da angústia como um sinal de alarme mediante a um perigo que o indivíduo vivencia, isto é, um afeto do sujeito em detrimento de um risco que o mesmo corre (DANTAS, 2007).
A angústia, afeto indeterminado por excelência, comporta algo de uma memória que, em suspensão, aguarda ser recordada e historicizada. Assim, desde o início, o termo angústia (angst, em alemão), na obra freudiana, designa uma modalidade de medo cujo objeto parece revelar-se obscuro, impossibilitando uma organização e simbolização subjetiva. (DANTAS, 2007)
É perceptível, a partir desse pressuposto de Dantas (2007) com bases em Freud, que a angústia pode ocasionar na destruição da persona, o que seria prejudicial ao sujeito, logo que o mesmo estaria desconstituindo a forma com a qual significou simbolicamente algo.
Após essa síntese da perspectiva da persona e da angústia que, quando ferida, pode refletir-se no sujeito, vamos adentrar no campo das representações do corpo do sujeito, que vai muito além das aparências.
2. Easter Eggs: as Representações Subjetivas do Corpo
Em informática, um termo vem sendo utilizado com grande frequência para descrever surpresas ou características ocultas em determinados jogos virtuais, aplicativos, DVDs e softwares em geral: easter egg(em livre tradução, “ovo de páscoa”). Neste artigo, será utilizado o termo para descrever as características ocultas que o sujeito despende a seu corpo ou a atributos dele (características as quais necessitam de minuciosa análise para serem descobertas).
Pode-se dizer que o corpo é constituído por aspectos objetivos e subjetivos. O primeiro diz respeito ao que se pode ver, à aparência do sujeito, aos adereços que ele apresenta – como brincos, colares e tatuagens, por exemplo –, às marcas etc. O segundo, por sua vez, referencia aos sentidos e significados que o sujeito estrutura profundamente (TEVES, 2007, p. 49).
É facílimo identificar um corpo por seu tamanho, sua largura, sua cor, seu sexo etc., mas exige uma análise constante e intensa se a busca for pelas significações que nele estão ocultas. Os easter eggs são protegidos pela persona, que apenas deixa aparecer um eu idealizado socialmente.
O corpo representa, como afirma Daolio (1995, p. 25) o contexto em que o indivíduo está inserido. Ele é a forma viva da cultura, das capacidades, dos ideais, dos sonhos e objetivos do sujeito. Nossos atos, desde a forma como nos sentamos à maneira como reagimos em meio a uma discussão, são reflexos dos ambientes transpostos em nossos corpos.
Existem, porém, outras significações do corpo. A forma como o sujeito se veste, a valorização que ele dá a sua voz ou ao seu paladar, a maneira como ele trata seu cabelo ou sua pele, são aspectos subjetivos ocultos. São esses aspectos que constituem o eu da psicanálise.
Para Freud e a psicanálise, o eu estaria completamente ligado ao corpo. Muito mais do que isso, seria “uma extensão da superfície corpórea”. “Os processos fisiológicos e os processos psíquicos são interdependentes, fazendo com que o biológico e o simbólico dialoguem desde o início da construção da subjetividade” (FERREIRA, 2008, p. 473).
Todas as representações que o sujeito faz do corpo são, como afirma Ferreira (2008, p. 477), as experiências de vida sintetizadas: são as emoções, os sentimentos, as características do que foi vivenciado, resumidos através de “sensações erógenas eletivas, arcaicas ou atuais, sendo também memória inconsciente de todo o vivido relacional”.
A forma a qual o indivíduo atribui sentido ao seu corpo ou a uma característica em especial do mesmo, como afirma Ferreira (2008, p. 480), é constituída através de uma percepção, ao mesmo tempo, individual e coletiva. Na perspectiva da construção individual, o indivíduo produz uma imagem de si com a qual é capaz de apresentar-se ao meio social, enquanto que, na perspectiva coletiva, ele é moldado através do capitalismo que “exige” que busque aparatos para se adequar a sociedade contemporânea.
O indivíduo, porém, não deve ser apenas passivo quanto aos padrões socioculturais. O capitalismo exige muito mais: quer que o sujeito lance tendências que sejam seguidas para em seguida investir, tornando-as também padrões (FERREIRA, 2008, p. 481). Poder-se-ia dizer que essa seria uma relação de mutualismo, mas como apenas uma das partes mostra-se realmente beneficiada, o termo correto a se utilizar é parasitismo, logo que o capitalismo retira do indivíduo o máximo, e não o devolve de forma justa.
Pode-se dizer então, que a própria subjetividade que o sujeito não deixa transparecer é controlada, e que os sentidos atribuídos por ele (e não estão visíveis) não são livres de mediação social. Os easter eggs do corpo, apesar de ocultos, são de certa forma, fáceis de serem manipulados e modificados. Toda representação do corpo, pode-se dizer, é controlada por “forças sociais”, que atuam sobre ele e, em seguida, se mascaram, não se deixando mostrar. Nada o que fazemos ou vivenciamos está realmente livre.
Conclusão
Este trabalho teve como intuito contribuir para o debate acerca dos sentidos dados ao corpo no conjunto da sociedade, e ressaltar que o corpo se encontra nessa encruzilhada entre o ego e a sociedade, entre a natureza e a cultura, entre o biológico e o simbólico.
Diferentes formas de construção da imagem do corpo são dadas através da propagação da estética, da busca por um padrão perfeito, o que reflete em grandes conflitos subjetivos. O eu ideal se constrói por meio de diferentes pedagogias, as quais podem ser encontradas nos mais diversos meios de comunicação e mídia.
O que o indivíduo deve perceber é que ele não é apenas o corpo. Algumas vezes, um choque de realidade é o bastante para a modificação da visão do indivíduo. Rachel Berry, a personagem citada no artigo, por exemplo, descobriu que é muito mais que sua voz, quando se viu em meio a uma pessoa que achava que sua vida era a capacidade de correr, jogar futebol, enfim, que perdeu completamente o movimento do corpo e ainda conseguia ser feliz. Em contrapartida, na maioria das vezes, o choque não é o bastante para mudança de concepção, e o sujeito requer análise e terapia, podendo exigir muito tempo.
A política da sociedade busca encaixar as pessoas em categorias convenientes a ela, sendo bonito, feio, gordo, magro, nerd, popular, louco, inteligente e gay são alguns deles. Por mais fácil que seja viver sobre um rótulo, como são apenas máscaras que escondem o verdadeiro eu, serão quebrados. A compreensão sobre si mesmo e a busca de agradar a si e não a sociedade se mostra como o melhor método de superar esse desafio social.

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